Sigla feita por agentes da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) na área externa da Ocupação. |
Os moradores da Ocupação Machado de Assis atravessam mais uma fase de incertezas, com visitas de agentes da prefeitura acompanhados da Guarda Municipal e da Polícia Militar. Alegando o início de um processo de cadastramento, os representantes da prefeitura pediram documentos e assinaturas dos residentes. Ao longo da primeira visita, na segunda-feira, dia 11 de abril, um caminhão e duas kombis da Guarda Municipal levantaram a suspeita de uma ordem de despejo, que foi confirmada pelos servidores municipais. A notícia preocupou os moradores, que ocuparam os portões do espaço para impedir a ação da prefeitura. No caminhão, os agentes traziam pás e picaretas para derrubada das casas que estão sendo construídas na parte externa da Ocupação - formalmente considerada um terreno à parte do prédio da antiga fábrica – onde residem 25 famílias.
O conflito só foi amenizado após a presença de assessores jurídicos do Gabinete Parlamentar da Vereadora Sônia Rabello. Julio Meirelles e o fotógrafo Marcelo identificaram-se como advogados a favor das famílias e enfrentaram os agentes, que não apresentavam nenhuma documentação que justificasse o despejo judicial. Desconcertados com a quantidade de crianças no local, os policiais militares não deram continuidade à ação de despejo. Julio acompanhou o morador Edmilson – representante do terreno externo da Ocupação - à prefeitura, onde foram discutidas as intenções da Secretaria Municipal de Habitação e os direitos à moradia dos ocupantes. De acordo com Julio, a prefeitura quer removê-los do local de qualquer maneira, por meio de uma presença ostensiva desacompanhada de formalização, o que é muito suspeito.
As dúvidas para quem mora na Ocupação só fazem aumentar, principalmente a respeito da estratégia da prefeitura, que certamente tem a intenção de retirar os moradores do local como parte do projeto megalomaníaco “Porto Maravilha”. Os servidores aparecem sem aviso prévio, sem identificação e não prestam esclarecimentos a respeito do processo administrativo em questão. Apresentam aos moradores sua única alternativa: o cadastro para o recebimento de um auxílio-moradia (o aluguel social).
Desmantelamento do Núcleo de Terras
O Núcleo de Terras e Habitação (Nuth) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro foi criado para promover a assistência jurídica de comunidades de baixa renda. Sua criação precedeu de debates entre a própria Defensoria Pública e defensores dos direitos humanos associados à luta pelo acesso democrático à terra e movimentos sociais e populares. Sua concepção e atuação foi uma conquista da Defensoria Estatal autônoma em face dos interesses seculares de defesa da propriedade - no Brasil, interesses fundamentais de nossa desigualdade social.
A população pobre há muito tempo radicada em moradias penosamente conquistadas e construídas, vem sofrendo ações de remoção seguidas de irreparáveis atos demolitórios cometidos pelo prefeito Eduardo Paes. De acordo com um dos fundadores do Núcleo de Terras, o procurador aposentado Doutor Miguel Baldez, o prefeito, seu secretário de Habitação e subprefeitos das áreas atingidas tomaram como pretexto a preparação da cidade para os jogos da Copa do Mundo (em 2014) e as Olimpíadas (de 2016) para desrespeitar a Constituição Federal, cujo artigo 1º assegura em cláusula pétrea absoluta o respeito à dignidade do homem e da mulher e no artigo 5º a garantia da desapropriação, com pagamento prévio de preço justo àqueles que têm a casa destinada a qualquer fim de interesse ou necessidade pública.
No dia 29 de abril, defensores públicos do Núcleo de Terras foram impedidos de entrar na defensoria: alguns foram transferidos para outros municípios e os estagiários foram sumariamente demitidos. Este processo de desestruturação do núcleo, às vésperas do 1º de maio (Dia do Trabalho) ocorreu em um período em que a demanda do setor havia aumentado em 80% em função das remoções realizadas por conta das obras para a Copa e Olimpíadas. A sala de reunião do Núcleo, onde o atendimento dos assistidos era realizado, foi fechada no mesmo dia das demissões, protegida por um segurança posto dentro do órgão, sem qualquer justificativa. Este processo de perseguição política foi conduzido pela nova gestão da Defensoria Pública, capitaneada por Nilson Bruno Filho. Segundo uma carta aberta redigida pelos ex-estagiários: “As atitudes adotadas pela chefia da DPGE, com retirada de TODA A EQUIPE do Núcleo de Terras (férias compulsórias dos funcionários e demissão dos estagiários) foram realizadas de maneira arbitrária, violenta e prejudicando diretamente as pessoas que estavam sendo atendidas pelo núcleo temático, uma vez que não foi permitida a transição do conhecimento dos processos e atendimentos em cursos à nova equipe de profissionais que agora integra o NUTH”. É por meio de tais abusos que a atuação da defensoria pública – que deveria ser voltada para o povo - está se alinhando aos interesses inconstitucionais da Prefeitura e sua Secretaria de Habitação, favorecendo o processo de violação de direitos humanos por meio de remoções de classes empobrecidas.
A defensora pública que atuava ao lado das famílias da Ocupação Machado de Assis, Dra. Marília Corrêa Farias, não compactuou com a nova diretriz imposta pela administração superior e sentiu-se obrigada a deixar seu cargo. Se não fosse pela eventual presença de advogados do gabinete da vereadora Sônia Rabello, a Ocupação estaria completamente desamparada juridicamente.
Embora o programa de governo de nossa presidente eleita Dilma Rousseff tenha como prioridade a erradicação da miséria, o prefeito Paes e o governador Sérgio Cabral (com a complacência do governo federal) pautam sua agenda governamental por equívocos administrativos de costumes elitistas e conservadores, empreendendo, sem cerimônias, uma faxina étnica no Estado. Nas palavras de Baldez, “a presidente não quis dizer que a erradicação da pobreza se faria através de variada forma de violência, oficial ou não, como mandados judiciais, ações policiais e terrorismo municipal. Não é e nem será por meios cirúrgicos que a senhora presidente pretende erradicar a pobreza, mas sim por mecanismos de inclusão social”¹. Entre os maiores beneficiários da estratégia de Paes e Cabral – choque de ordem, remoções e UPPs - está a especulação imobiliária; o povo é o último na fila de benefícios.
A Anistia Internacional e a ONU já manifestaram seu desacordo em relação à maneira como vem sendo impostas as remoções e reassentamentos populares de moradores por conta da preparação para os megaeventos esportivos. Raquel Rolnik, relatora da ONU, destacou a proposital falta de diálogo entre o poder público e as comunidades atingidas e listou as violações cometidas pelo Estado: “A primeira é a violação do direito à informação. As comunidades diretamente atingidas, quando recebem alguma informação, recebem de maneira incompleta. As negociações são feitas pessoa a pessoa, família a família, dividindo a comunidade, muitas vezes por meio de ameaças e pressões. A prefeitura negocia individualmente, consegue remover um morador, derruba sua antiga residência e isso vai degradando toda a comunidade, de modo que fique insuportável continuar no local. Às vezes nem se dão ao trabalho de demolir as casas por completo, eles quebram só o suficiente para marcar o espaço, para criar um ambiente super degradado para os moradores. As pessoas ficam com medo”. Além da falta de transparência do poder público, a ausência de diálogo e a efetuação de despejos de forma violenta, o baixo valor das indenizações também é mais uma forma do abuso comum ao processo. O secretário-geral da Anistia Internacional Salil Shetty mencionou a inevitabilidade das mudanças para sediar as Olimpíadas, “mas as pessoas que vão ser afetadas precisam ter uma voz, e um processo legal deve ser seguido. Acho que todos os exemplos que ouvimos mostram que esse processo não está sendo seguido”.
O secretário municipal de Habitação, Jorge Bittar, alegou que a prefeitura tem “procurado trabalhar com grande atenção social às famílias” no processo de remoções e informá-las sobre suas alternativas. Elas podem ser transferidas para um imóvel construído dentro do programa habitacional Minha Casa Minha Vida - a maioria em áreas remotas, distantes do Centro - receber uma indenização no valor em que sua casa for avaliada (o que não inclui o valor do terreno em caso de ocupações não regularizadas) ou receber aluguel social, no valor mensal de R$ 400.
CPI das Remoções
O vereador Eliomar Coelho (PSOL/RJ) deu entrada em requerimento junto à Mesa Diretora da Câmara Municipal pedindo a instalação de uma CPI das Remoções. O objetivo da Comissão Parlamentar de Inquérito é investigar remoções de comunidades que estão no traçado dos corredores viários Transoeste e Transcarioca, em torno do Sambódromo, na região do Maracanã e na Zona Portuária, que passa por revitalização; e até crimes ambientais e de racismo. Para ser aprovado, o requerimento precisa do apoio de 17 vereadores, num total de 51 parlamentares do Legislativo carioca. Amanhã, dia 28 de junho (terça-feira), o mandato de Eliomar realizará uma força tarefa para conseguir as quatro assinaturas que faltam para a instalação da CPI das Remoções. Além de debater o tema com os vereadores, a ideia é exibir no Plenário da Câmara e em um telão instalado na Cinelândia vídeos em que moradores de comunidades carentes denunciam crimes cometidos pelo poder público durante o processo de remoção. DVDs também serão entregue aos parlamentares. A CPI foi proposta no dia 03 de maio deste ano, mas até o momento apenas 13 vereadores assinaram. O apoio da sociedade organizada na pressão à Câmara Municipal do Rio de Janeiro é fundamental para que o requerimento consiga as 17 assinaturas de apoio e a instalação efetiva da CPI para que os diversos crimes sejam apurados e os responsáveis incriminados.
Para não deixar dúvidas, alguns registros em vídeo:
Jorge, morador do que sobrou da Vila Recreio, disse tudo: remoção é para lixo, gente não se remove, gente se reassenta. Apóie a CPI das Remoções.
Links relacionados:
Guias da ONU - "Querem nos despejar, e agora?" e "Como atuar em projetos que envolvem despejos e remoções?
Matéria de Rodrigo Martins para a Carta Capital - "No vale tudo das Olimpíadas"
*Foto: Assessoria do Gabinete Parlamentar da Vereadora Sônia Rabello